Comentando Morte e Vida Severina

Pensei em fazer um post sobre poesias do Recife, mas quando comecei a selecionar os textos apenas um poeta me veio em mente: João Cabral de Melo Neto.



Nascido no Recife na década de 1920, passou parte de sua infância nos engenhos da família nos municípios de São Lourenço da Mata e Moreno. Acredito que esses momentos tiveram grande influência nos seus trabalhos. Era de um grupo de intelectuais e poetas, sendo primo de Manuel Bandeira (já visto aqui no blog) e Gilberto Freyre, bem como irmão do historiador Evaldo José Cabral de Melo.


Apesar de ter retornado ao Recife em 1930, provavelmente presenciou muitos retirantes fugindo do sertão, saindo da seca do semi-árido, com ápice em 1932, para o deserto da monocultura da cana-de-açúcar na zona mata, onde só há o mar verde e nenhuma alma.

Acredito que todo esse contexto pode ser visto no seu principal livro: Morte e Vida Severina, onde é relatado a fuga de um retirante da Paraíba para o Recife, seguindo o trajeto do Capibaribe, seu principal guia.
"[...]
Como então dizer quem falo    
ora a Vossas Senhorias?    
Vejamos: é o Severino    
da Maria do Zacarias,    
lá da serra da Costela,    
limites da Paraíba.
[...]"

Morte e Vida tem um caráter até mórbido, sobretudo ao relatar a procura do retirante por emprego em lugar onde apenas a morte tem vez. Como um retirante, agricultor de pedras poderia encontrar trabalho onde a morte é meio de vida?
"[...]
- Agora se me permite   
minha vez de perguntar:   
como senhora, comadre,   
pode manter o seu lar?

-Vou explicar rapidamente,   
logo compreenderá:    
como aqui a morte é tanta,   
vivo de a morte ajudar
[...]"

Então o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela procurou retirar pelo lucro? Não. Ele buscou somente a necessidade básica de cada ser humano: Viver. Só que ao chegar na Mata ele se dá conta de que não há diferença com a caatinga, mesmo coa terra boa onde os rios são eternos. 

"[...]
O que me fez retirar  
não foi a grande cobiça  
o que apenas busquei  
foi defender minha vida  
de tal velhice que chega  
antes de se inteirar trinta  
se na serra vivi vinte,  
se alcancei lá tal medida,  
o que pensei, retirando,  
foi estendê-la um pouco ainda.  
Mas não senti diferença  
entre o Agreste e a Caatinga,  
e entre a Caatinga e aqui a Mata  
a diferença é a mais mínima.
[...]"

No final, Morte e Vida apresenta o nascimento do filho de José de Carpina, morador de Mucambo, vindo de Nazaré da Mata. Nisso surge a analogia com o espetáculo do Natal, que dá nome a livro. Porém, diferente dos reis magos, os mucambeiros tem pobreza geral e dão presentes modestos, como caranguejos, jornais para se cobrir, Pitú, mangas, dentre outros. Em seguida, duas ciganas fazem a previsão do recém nascido, inserindo a futura criança no ciclo do caranguejo, proposto por Josué de Castro.

"[...]
Vou dizer todas as coisas   
que desde já posso ver   
na vida desse menino   
acabado de nascer:   
aprenderá a engatinhar   
por aí, com aratus,   
aprenderá a caminhar   
na lama, como goiamuns,   
e a correr o ensinarão   
o anfíbios caranguejos,   
pelo que será anfíbio   
como a gente daqui mesmo. 
[...]"

Estes são alguns dos aspectos de um dos principais livros do autor. Outros diversos outros poemas e textos poderiam ser citados, como Cão Sem Plumas, onde o autor coloca o rio Capibaribe como narrador do texto, ou o Rio ou Relação que faz o Capibaribe de sua Nascente à Cidade do Recife.

Por fim, deixo o início de um relato do próprio João Cabral sobre esse seu poema:

"Meu primeiro poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade. Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Eu não precisava estar lá para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do Capibaribe, que conheci na minha adolescência andando pelos mangues perto de casa, na Jaqueira. Algumas pessoas chegaram a me perguntar se eu tinha me inspirado em Josué de Castro e sua Geografia da Fome na hora de escrever esses dois poemas. Conheci, admiro e respeito Josué de Castro, que foi meu chefe em Genebra. Mas não me inspirei nele. Fiz poesia e emoção sobre aquela realidade miserável do Recife. Ele fez ciência. Essa é a diferença entre nós.[...]" (leia o resto aqui).

P.s: Aqui segue uma lista de Morte e Vida para comprar
P.s1: Gostei de sair das imagens fotográficas e entrar nas imagens do Recife literárias.

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